domingo, abril 28, 2024




A Paixão Grega 

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, 
quando alguém morria perguntavam apenas: 
tinha paixão? 
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão: 
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música, 
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos, 
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória, 
paixão pela paixão,
tinha? 

e então indago de mim se eu próprio tenho paixão, 
se posso morrer gregamente, 
que paixão? 
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra, 
os grandes poemas desaparecem
nas grandes línguas que desaparecem, homens e mulheres perdem a aura 
na usura, 
na política, 
no comércio, 
na indústria, 
dedos conexos, 
há dedos que se inspiram nos objectos à espera, 
trémulos objectos entrando e saindo 
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo 
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega, 
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva, 
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes, 
palavra soprada a que forno com que fôlego, 
que alguém perguntasse: tinha paixão?

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia, 
ponham muito alto a música e que eu dance, 
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna, 
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão 
e eu me perdesse nela 

a paixão grega. 

Herberto Hélder  |    A Faca Não Corta o Fogo




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